Jurisdição estatal mantida: a inoponibilidade da cláusula compromissória ao sócio dissidente em ação de apuração de haveres

A discussão sobre a competência para julgar disputas societárias, especialmente quando há cláusulas compromissórias de arbitragem, é um tema de constante relevância no cenário jurídico brasileiro. 

Recentemente, uma decisão judicial reforçou a proteção ao sócio dissidente em ação de apuração de haveres patrocinada pelo escritório, afastando a preliminar de incompetência do juízo estatal e garantindo a tramitação do processo na justiça comum.

O cenário da arbitragem societária

Em muitos contratos sociais de sociedades limitadas, é comum a inserção de cláusulas de arbitragem, que preveem que eventuais conflitos entre os sócios ou a sociedade serão resolvidos por um tribunal arbitral, e não pelo Poder Judiciário. Essa prática, respaldada pela Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/96), visa a celeridade e a especialização na resolução de litígios complexos.

No entanto, a validade e a oponibilidade de tais cláusulas não são absolutas, especialmente quando um sócio decide se retirar da sociedade em razão da modificação do contrato social para a inclusão da cláusula compromissória de arbitragem com a qual não concorda.

A tese da incompetência argumentada pela sociedade

No caso em questão, a sociedade e os sócios remanescentes defenderam a incompetência do juízo estatal. Alegaram que uma alteração contratual havia instituído a cláusula compromissória de arbitragem antes da formalização do pedido de retirada do sócio. Argumentaram que, por ter sido aprovada pela maioria do capital social, essa cláusula vincularia todos os sócios, incluindo o dissidente, nos termos do Art. 1.072, §5º, do Código Civil. Fundamentaram-se também no princípio da kompetenz-kompetenz, que confere ao próprio tribunal arbitral a prioridade para decidir sobre sua própria competência.

A defesa do sócio dissidente e a efetividade da retirada

A defesa do sócio retirante, por sua vez, sustentou a competência do juízo estatal, apresentando argumentos cruciais para a proteção do direito de recesso. Foi destacado que, em casos de retirada motivada por dissidência quanto à modificação do contrato social, aplicam-se as disposições vigentes anteriormente à alteração que gerou a discórdia, conforme o Art. 1.077 do Código Civil.

Além disso, a invocação subsidiária da Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404/76), permitida quando prevista no contrato social de uma sociedade limitada, trouxe o Art. 136-A da referida lei para o centro do debate. Este artigo estabelece que a convenção de arbitragem somente terá eficácia após 30 dias da publicação da ata da assembleia geral que a aprovou.

Por fim, sustentou-se que princípio da kompetenz-kompetenz invocado pelos sócios remanescentes não seria aplicável ao caso, pois a aplicação desse princípio pressupõe a presença de uma convenção arbitral oponível às partes quando nasce a controvérsia. Em resumo, é dizer: onde não há convenção produzindo efeitos, não há competência arbitral a ser afirmada.

A cronologia dos fatos foi determinante: o sócio dissidente notificou formalmente a sociedade sobre seu direito de retirada antes que a cláusula de arbitragem tivesse completado seu período de vacância e, consequentemente, antes de se tornar eficaz. Essa “inoponibilidade temporal” da cláusula foi um ponto chave, pois, se a convenção de arbitragem não produzia efeitos no momento da resolução da sociedade em relação ao sócio, ela não poderia ser oposta a ele.

A jurisprudência tem amparado esse entendimento, reconhecendo que a cláusula arbitral não pode ser imposta ao sócio que se retirou antes de sua efetiva validade, garantindo a competência da jurisdição estatal.

A decisão judicial: afastando a incompetência

A análise judicial acolheu a tese do sócio dissidente, rejeitando a preliminar de incompetência do juízo estatal. A decisão fundamentou-se na clara sucessão temporal dos eventos: a notificação do direito de recesso antecedeu a eficácia da cláusula compromissória de arbitragem.

Especificamente, o juízo reconheceu que:

  • A sociedade recebeu a notificação de recesso do sócio em uma data anterior ao início da eficácia da cláusula compromissória de arbitragem (que depende do transcurso do prazo de 30 dias após a publicação da ata).
  • Portanto, no momento da resolução da sociedade em relação ao sócio, a cláusula arbitral ainda não produzia efeitos jurídicos e, consequentemente, não era oponível ao sócio retirante.
  • Dessa forma, a competência para julgar a ação de apuração de haveres permaneceu com a Vara Cível, garantindo ao sócio o acesso à justiça comum para a defesa de seus direitos.

Implicações e importância da decisão

Esta decisão é um marco importante para a segurança jurídica e para a proteção dos direitos dos sócios em sociedades limitadas. Ela reafirma que, mesmo diante da previsão de arbitragem, a temporalidade e a efetividade das cláusulas contratuais são fatores cruciais. Para o sócio dissidente, a decisão representa a garantia de que o direito de recesso, exercido em conformidade com a lei, prevalece sobre uma cláusula de arbitragem ainda ineficaz.

Para sociedades e advogados, o caso sublinha a necessidade de atenção redobrada aos prazos e à sequência dos atos societários e processuais. A correta aplicação das regras do Código Civil e das leis específicas (como a Lei das S.A., quando aplicável subsidiariamente) é fundamental para evitar surpresas e assegurar que a escolha do foro adequado para a resolução de litígios esteja em perfeita consonância com os direitos das partes envolvidas.

A manutenção da jurisdição estatal neste cenário demonstra a vitalidade do Poder Judiciário em analisar as especificidades de cada caso, equilibrando a autonomia da vontade das partes com a proteção dos direitos individuais do sócio, especialmente quando em situação de retirada da sociedade.

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